Porte

Porte, fantasma, pó e fumaça 

Germano Dushá 

Um rastro de tinta branca surge no asfalto como testemunho do caminho percorrido por um skatista (Trajetos urbanos, 2011). Um toldo verde que durante o dia serviu aos clientes de um boteco à noite desce até o limite do asfalto para abrigar um sujeito que dormirá na calçada (Mutualismo, 2013). Um alambique caseiro é instalado num contexto de acesso público para distribuir pinga gratuitamente (Open Bar, 2016). Na fachada de uma parede da rua aparece uma faixa branca com dizeres em vermelho que defende o “Direito à loucura” (Direito à loucura, 2020).  

Em quase uma década e meia de trajetória, a obra de Raphael Escobar tem se desenvolvido a partir da criação de um rico repertório simbólico e de ações práticas que investigam e provocam os enlaces entre subjetividade e sociedade, com especial interesse pelas relações de classe e pelas dinâmicas entre a produção de imaginário social e a contínua opressão de certos grupos marginalizados no capitalismo contemporâneo. Por meio de provocações da língua, de perfurações de discursos e de pequenos dribles no funcionamento maquinal do cotidiano, o artista aborda as complexidades da rua, os conflitos inerentes ao espaço público, e as tensões que permeiam a abissal desigualdade na distribuição de recursos e violências no corpo social. 

Nos últimos anos, essa disposição encontrou rumo nas pesquisas livres, análises críticas e práticas experimentais acerca do sistema de produção, circulação e consumo de substâncias ilícitas e os esforços organizados ao redor de sua repressão. Ou seja, o binômio "drogas" e "guerra às drogas". Impulsionado por suas experiências como educador não formal, articulador e militante em contextos de vulnerabilidade social, o artista joga luz sobre narrativas e processos envolvendo a criminalização de certas práticas e substâncias. De um manual que expõe a inventividade e as soluções técnicas na fabricação improvisada de utensílios para o fumo (Cachimbeiro, 2016) até uma fábrica de pílulas de café e açúcar feitas tal qual as "balas" de ecstasy (Placebo, 2022), saltam provocações que questionam o senso comum a respeito das linhas invisíveis que separam a legalidade da ilegalidade, e apontam o absurdo das forças oficiais que enxugam gelo e jorram sangue nessa zona fronteiriça.

Nesta exposição individual, sugestivamente intitulada de "Porte", uma série de objetos insólitos, frutos de arrumações improváveis entre elementos comuns, são expostos em toda sua gravidade social e, portanto, para além de sua materialidade objetiva. São estudos sobre a cultura da espetacularização ao redor das inócuas ações antidroga, que há muitas décadas assola o noticiário televisivo sensacionalista e vampiresco, e mais recentemente se prolifera livremente nas redes sociais. Estão relacionadas, portanto, de modo direto com a estética da "apreensão e arte" — imagens com aspiração artística divulgadas por policiais orgulhosos de suas contribuições fundamentais para a proteção e bem-estar da população. Esses arranjos revelam o profissionalismo e o alto grau de eficiência de nossas forças policiais, mas também o pensamento construtivo, a vontade escultórica e a capacidade instalativa de seus contingentes. Nessas ocasiões, os materiais apreendidos são apresentados em todo o seu vigor formal, e não raro em composições inventivas a serem fotografadas. Surgem, então, empilhamentos criativos com tijolos de maconha, formações geométricas feitas com papelotes, e até mensagens escritas com cédulas, munições ou pinos de cocaína.

O foco de Escobar é no último ponto desse contrassenso, quando não há nem mesmo a droga, apenas os possíveis índices de sua existência ou qualquer fantasmagoria que o valha. Muito embora portar qualquer dessas coisas que enxergamos aqui não esteja tipificado como crime no aparato judicial brasileiro, tudo poderia ter sido apreendido pela polícia. Antenas, moedas, tênis de mola, relógios e correntes douradas, e mesmo sedas, isqueiros, facas, nada é proibido na lei escrita até que o seja pela mão que a executa. Afinal, no Brasil, a diferença entre cidadão e criminoso, ou usuário e traficante, está nos olhos de quem vê. Depende do bolso de quem carrega, do nariz de quem cheira, da boca de quem fuma, ou da mão de quem organiza os fluxos. É aí que vão se desenhando as aproximações incontornáveis e enormes diferenças entre as pontas do sistema: apartamentos de luxo e biqueiras comuns; operações financeiras transnacionais e dinheiro que passa de mão em mão; narcotraficantes internacionais — muitos deles com assentos oficiais — e aqueles que operam na superfície visível, com muito pouco ou quase nada, levando chumbo nas zonas periféricas das metrópoles. É tudo contexto!

Escobar se vale da evocação espiritual dessas peças para tensionar as linhas de força entre objeto e narrativa, entre fatos e ficções, tomando-as como síntese da existência mais material da sociedade contemporânea. Por trás da estranheza magnética dessas junções, há o non-sense gore do panorama macro, toda a violência brutal e absurdez generalizada que nos cerca. Cada objeto evoca a dinâmica de uma sociedade que, pautada por um sistema operacional baseado numa suposta racionalidade, roda um programa sem sentido, tão cômico quanto trágico. Um sistema sem vergonha, que massacra o potencial humano ao seu nível mais baixo, e não pensa duas vezes antes de passar os recibos que atestam a sua cabal ineficiência e funesta falta de lógica e de justiça.

Além dos objetos, duas fotografias ao fundo contribuem para a tradição da natureza morta na história da arte. São paisagens clássicas que reencenam com dramaticidade os fetiches e os clichês ligados ao consumo de substâncias psicoativas, sublinhando não apenas os apetrechos mobilizados pela prática recreativa de entorpecimento, mas também a atmosfera e a conjuntura que o enreda. Essas imagens trazem em seu chiaroscuro uma profundidade final para um campo de experiências composto por objetos sólidos e mentais, organizados de modo a nos ajudar a acessar a matriz de um complexo estético-social que com uma mão produz imagens e com a outra tritura gente. Eis aqui, então, um espaço conceitual em que nossos corpos podem caminhar pelas energias e códigos linguísticos que correm entre materialidade e ideia, entre as coisas em si e o que nos escapa — aquilo tudo que já foi, que agora é mero espectro, só um fantasma. Virou pó, virou fumaça.

PDF
No items found.