E SE

& - A promessa como especulação temporal compartilhada.
Maíra Dietrich

O gesto de vocalizar uma promessa é inevitavelmente um gesto de construção de futuro. Construir elucubrações proféticas, sonolentas ou freneticamente lúcidas, é sempre preparar, arquitetar e assuntar um tempo futuro, um outro momento que vem depois desse. A especulação dessa exposição não chega a ter o porte da ficção nem da previsão, aqui ela se configura como uma hipótese falada, hipótese com h minúsculo pois, por mais coletiva que seja sua vocalização, a promessa parece sempre partir de um foro íntimo.

Especular é proto-prometer, juntar um ‘e se’ encima do outro. E esse gesto de enfileirar possibilidades é, antes de mais nada, um convite: desatrofiar a coragem de imaginar coletivamente, especular, assuntar, criar marcações, jogar um verde com o vindouro. E nessa toada de bifurcações intencionais, só podemos desejar que a assimetria entre lugar de partida e o lugar de chegada de uma promessa não nos sejam obstáculos impeditivos. Arte né?

Seja em configuração de amor, vingança, blefe ou gesto de auto-convencimento, a vocalização da promessa crava uma atitude que amarra o presente e o que vem, cria uma linha invisível e maleável que opera na sutileza. Como se ela partisse de um lugar que descama o cinismo, a estagnação e o cansaço. Existe um comprometimento, e mesmo em silêncio ele segue operando, na latência da espera ele arqueia e tensiona, estica e um dia cobra, afinal, algo foi prometido. 

Nas trocas com as artistas, por mais que falávamos de trabalhos já existentes, foi recorrente o desejo de atualização do trabalho, a intenção de calibrar ele com o acontecimento coletivo em questão. Refazer uma peça, re-espacializar um inédito, especificizar o protocolo, refilmar o que já editei, rasurar o que já disse. Isso me faz pensar que o objeto de arte em si é uma promessa. A obra existe, se soldifica, expande, desenrola, gesto perpétuo; o trabalho de arte, que nada mais é do que a manifestação físico-temporal da obra, é aberto, poroso e editável, uma promessa em forma de acontecimento presenciável, sempre sob influência do campo magnético presente-futuro.

Os trabalhos da exposição são staccatos que se enroscam por motivos às vezes óbvios mas que não deixam de ser surpreendentes: uma curva, uma ponta, um procedimento, uma forma gráfica, uma circularidade temporal. Para cada trabalho proponho uma linha de interpretação, como num hexagrama, na palma da mão ou nas expressões faciais, vamos ler a sorte, interpretar intenções e serendipidade na tradução gráfica de cada uma dessas promessas.

O - Círculo de risco: elo de reciprocidade.

O trabalho de Wisrah Vilefort ocupa o lugar de contrato da exposição, ele simboliza um combinado, um círculo de confiança que pousa na parede em três tempos, portão, porta e alarme. Uma versão do famoso mi casa su casa, vestindo uma austeridade formal digna de contrato conceitual, que, num projeto chamado Galeria de Artistas, parece lacrar o ciclo de confiança que edifica nossa prática. A temporalidade tem um aspecto circular nesse combinado, a artista pede as chaves, nós damos as chaves, a artista devolve as chaves para o espaço expositivo, o público testemunha esse trato. Fazer reverência é abaixar a cabeça, abaixar a cabeça é demonstrar confiança, demonstrar confiança e permitir a outra ter uma parte sua, ao se ganhar uma parte se dá uma parte. A confiança aqui se mexe como pêndulo, ganhar e entregar posses, pedaços, corações.

#- Sobreposição que vibra: harmonia convulsa.

Os três desenhos de Felipe Abdala sustentam a quina diagonal da exposição. Por sua qualidade pontiaguda? Não, por sua aptidão à vertigem. Os desenhos são feitos de camadas de desenhos apagados onde o apagar não é da ordem do corrigir, nem do refazer como gesto de negação ao já feito. A camada de luta é a visualização do ajuste, da possibilidade, onde a poeira de grafite e o desgaste do papel atestam que o novo, o original, o primeiro, o definitivo, são termos ocasionais e alternáveis. O rascunho vivo não opera sob a lógica do resultado final. Afinal, nos campos de teste, quem luta sabe que a maior soltura vive no treino, na qualidade não apaziguável da insistência. 

︷ - Transformação de energia: aleatoriedade oracular.

Natalie Braido, com sua engenhoca gráfico-eletro-magnética, ocupa a posição de oráculo da exposição. Montado como uma instalação de frente-e-verso, o trabalho acontece em duas perspectivas: quem vê o texto chegando não vê o texto sendo feito, quem vê a escrita não presencia sua chegada. Remetente e destinatário não se enxergam, não se sobrepõem. Mas sinceramente, no acontecer do trabalho mal temos tempo de se pensar nisso, nosso oráculo barulhento segue cuspindo suas previsões, suas especulações feitas na manualidade eletro-aleatórias, vai decendo uma espécie de verborragia gráfica. Desenho feito por raio eletromagnético em papel térmico.

8 - Renovação de votos: o pousado vibra

O trabalho da Ana Raylander Mártis dos Anjos é o coração da exposição, o trabalho que primeiro cantou a pedra da promessa como eixo amarrador. Com sua exímia caligrafia a artista age como revisora e comentadora de si, reagindo e rasurando hoje num texto escrito em 2020. Lindo ver essa página em paradoxo, as palavras anteriores, cravadas, pousadas, comprometidas, e as palavras de cima repuxando com setas e força gestual, reconvocado a vida o que foi pousado, se revendo se atualizando. Quem fica frente a frente com esse trabalho tem o privilégio de presenciar graficamente a renovação de uma promessa, uma segunda fase que duplica a força da promessa anterior. Testemunhar a coragem e disposição de quem desembrulha a si mesma como um presente. 

J - Vetor de projeção: desenho de desabroche.

O trabalho de Mayana Redin pousa no centro do espaço, essa paisagem, paradisiacamente fria, faz os olhos subirem e descerem seguindo seu contorno gráfico. No traquejo dos cheios e vazios da proposição escultórica, a artista fala através de um volume gráfico. O trabalho ao mesmo tempo volumoso e oco desenha um movimento, desabrocha, suspende, se interrompe ou se desfalece; às vezes curveia pra espiar outra vez. A linha sobe e desce sonoramente e parece respeitar algum tipo de temporalidade gravitacional, não necessariamente familiar a esse sistema solar. Mesmo com presença tão espacialmente enigmática, o trabalho consegue pegar na mão e guiar quem o vê num fluxo de forças matéricas: vem comigo ver a inconstância do ferro mole, os trejeitos da cerâmica viva, os enlaces da borracha sonora e os incessantes movimentos de força propulsiva. 

∗ - Potência expansiva: gesto rizomático.

O objeto instalativo de Kurru Bruno condensa a propriedade de editabilidade da sua prática artística, a qualidade generativa que se esparrama formalmente no espaço. O vídeo é composto com pedaços de asfalto e uma réplica em resina dos pés do artista. Caminhar, editar, recombinar, o trabalho está no fundo olhando a exposição. No vídeo, vemos uma espécie de expedição de busca, onde ao mesmo tempo os olhos enxergam, a cognição elabora, e principalmente, o éter entre uma coisa e outra fermenta o resultado. Um vídeo na perspectiva invertida, de repente a tela vira claraboia e estamos abaixo dos pés, vendo a imagem numa espécie de meta-espelho. De cima, debaixo ou de dentro, a perspectiva é sempre convidativa ao embarque no movimento contínuo, na circularidade da busca, na psicodelia do deleite visual. 

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